quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Os Miseráveis

Aquela velha história : Deus recompensou ter me feito pobre dando bons amigos. Se tivesse me feito rico e sozinho, não teria sido ruim também, mas, as histórias não seriam tão boas: pois bem, um grande amigo, o qual preservarei o nome por questões profissionais, me ligou aflito dizendo que, de fato, era verdade, Victor Hugo era melhor do que Baudelaire. Sua voz tinha notas etílicas, que meus ouvidos reconheceram de outros bares. Não se dá atenção a bêbados, a não ser que tenha ingerido quantidades semelhantes de álcoois naquela mesma noite. E as "Flores do Mal" e o "Spleen de Paris"? Que se foda, Paris. O Hugo escreve teatro, poesia, romance, tudo… O que? N’importe quoi! Me encontra no centro – sentenciei! Saltei do ônibus desligando o telefone. Nem sabia se estávamos na mesma cidade. Naquela altura era difícil achar o centro. Tudo é tão relativo. Após algumas erratas, nos encontramos finalmente e, de litrão em litrão, Charles e Victor, Victor e Charles, engalfinhavam-se na mesa vermelho-Brama do bar. Até hoje, tenho certeza que a literatura francesa ganharia muito se alguém lembrasse daquela discussão na manhã seguinte.

sábado, 23 de novembro de 2019

No ar

Para Gise
Quando soube, naquele dia exato,
parei de escrever
poema nenhum.
A floresta já queimava,
versos só desperdício de papel…

Estou longe de casa, faz um tempo, e, às vezes, ligo pra ter notícias: minha vó atendeu e com a voz estranha contou que, às 15hs, o céu estava tão ruim, parecia noite em São Paulo. A velha dormia e levantou assustada, meio estressada pela soneca longa demais. Pensa em arrumar depressa a janta, mas, o vô morreu, seu velho não existe mais. Não tem pressa mais, vó, disse meu primo triste. Ela notou aquela fumaça no ar das coisas que se perdem para sempre. Na escuridão deste Brasil, foram muitas coisas este ano, meu filho. Mas, logo, Dona Ica se preocupa apenas em saber se as plantinhas sobreviverão a essa chuva suja, Amazônia em cinzas molhando 
seu jardim. E,
com paciência,
desligou o telefone para vigiar
luz de outro dia que, sem dúvida, ela acredita que virá.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Sem título 3

Para Júlia Zuza
e seu Diário da Beleza Selvagem

  As couves do meu jardim, porque um dia plantei couves no meu jardim, saíram da terra como mãos fechadas, as unhas cravando a própria pele, as folhas enrugadas, amarelas, feias, elas tentavam segurar alguma coisa, eu sei. Aníbal disse que é uma praga. Ele deve estar certo. Mas, veja você, que ninguém conhece a verdade do ocaso das couves. Talvez, o mistério das coisas amargas leve mais tempo para gente entender. Sabe? Eu encontrei por acaso aquela foto do vô passando café, de pé, na cozinha – uma foto desbotada entre nós, ninguém mais vê ele assim. A mudança é sempre tão rápida: num dia, tudo está bem, as folhas verdes, suculentas, abertas ao sol, saudáveis e, no outro, é só sangue, merda e medo no corredor do Hospital Campo Limpo. Você sim teve sorte, guardou a última lembrança nossa quando foi embora. Todos estão felizes por você. Não volte! Eu, amanhã, arranco tudo e começo do começo, de novo. Mande lembranças.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Sem título 2


Para Valmir da Silva Batista

O amor foi venéreo e quase matou, mas era também bonito, amor, aquele inchaço florescendo em botão na carne, o pus amarelo no centro, a pontinha vermelha escorria, gota por gota, no chão de caquinhos lá de casa. Lembra? O verde hematoma da cor de seus olhos na minha pele pisada, cortada, tomada pela paixão generalizada, que acabou infeccionando tudo, fui parar na Santa Casa. E naquela emergência de alguma misericórdia, amor, eu tentei apagar seu nome tatuado no meu braço, risquei com gilete velha a veia, o romance perdido, os planos desfeitos, as lembranças que nem chegaram a ser nada, porque você foi, isso sim, o cerol na linha da vida d’um motoqueiro qualquer no chão da M’boi Mirim, pra mim. Mas, graças a deus, devagar o tempo sarou sua ausência e como tudo só restou uma coceira fácil de controlar com antibiótico e chá de carqueja quando arde, meu amor.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Poética Quebrada


Para Marcelino Freire,

Nunca disse pra ninguém! Foi quando o perfume de formol se misturou com o cheiro da coroa de flores, que a poesia perdeu todo o sentido por aqui, mãe. A única coisa, ficou lá dentro, ressentida, mórbida, só, que sai de mim espremida em linhas de varizes prestes a explodir é a dor. Nunca, não explode, ela incha, prosa inflamada vira literatura de sangue pisado, sabe? Com personagens doentes por conta da tarefa de disfarçar cotidianamente o fedor de decomposição, eu, a céu aberto.
*
Será que se fosse diferente, uma prosa com mais concordância, estilo e classe, menos repetição, inversões desnecessárias, viela, esgoto. Se o assunto fosse outro, viagens, os mares, noites, montanhas, uma estranha relação entre o outono, as folhas que caem, a poesia, os olhos claros dela… Será, se fosse assim, então, que aquela ambulância teria chegado a tempo? Na Piraporinha, no Chácara, no Jardim Marília, heim? Será que se eu colocasse a crase no lugar certo, isso traria o remédio que falta no posto Zumbi dos Palmares? Inútil, o verso mais lírico não esconde meu sonho mais grande: não morrer no corredor do Hospital Campo Limpo…
*
Por volta das 22hs, chegou mais um dos nossos, de 16 anos perfurados, ao seu lado na sala, algodão no nariz, cemitério São Luiz, duas balas alojadas – tórax e pulmão. Crocodilagem! Acredita? Judaria, mano, ele morava na 2, não tinha nada a ver com o bagulho. Cagada! Caguetaram o moleque sem dó roubando no lugar errado para samango desceu a ladeira tudo apagado pistolas caiu em cima morreu o menino como cachorro. Lembra? Estampido, coisa que cai, canto de pneu, cheiro de pólvora, João Dias, medo atrasado, sede, o instante exato em que as suas pupilas dilataram. Mãe, a vida não tinha mais jeito. Não dá pra acreditar, mano, escuto os tiros sem parar na minha cabeça, você, ali, rosto sem expressão de paz, flor pisada; derramado, eu grito para dentro o verso de protesto que garrote estanca e criminaliza as poucas estrofes do amor inexistente entre todos nós.
*
Era vazio a noite, enquanto a xícara de café distribuía o atestado de óbito para justificar a falta no trabalho, o gosto de misto-quente, de mão em mão, passava o silêncio interrompido apenas pela pá na terra, pela terra nas costas, pela respiração do futuro poeta se soterrando dentro de si.





quinta-feira, 13 de abril de 2017

Sem Título 1


A morte parece com uma garrafa térmica caindo de repente, não, não é isso, melhor dizer: é uma garrafa de café que cai devagar, eu vejo escorrer pela mão do meu vô, camisa azul, caneta no bolso escrito em branco CMTC, bater de quina na pia da cozinha, às 16hs, a luz atravessa a janela cheia de gordura; e ir para o chão num movimento previsível até, talvez, pudesse evitar se… o barulho de vidro estilhaçando o recipiente do dia a dia, vida triste, baratinho na Piraporinha acha outra – a garrafa manchada, verde opaco dos dedos velhos do vô, quebra por dentro um líquido quente, açucarado, tão íntimo que não sabe que está ali, para sempre, os cacos no fundo do corpo, agora, extranho a si mesmo, repousam.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Vozes de Ouro Preto

Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não escutou


 Só tem ladeira aqui. Os sapatos estão me matando. Acostumei descalço desde cedo, em casa, no Chácara, a lembrança doce de infância é os fiapos de vidro da rua entrando na carne devagar, com cheiro de chuva no asfalto quente, a agulha no fogo da vó tirando bichos da sola preta, furando as bolhas d’águas, pés sujos. Não vai dar para visitar todas essas igrejas. Este lugar dá saudades, não acha? Se continuar nesta direção, passamos pela Do Carmo, da Conceição, daí, vira direita na Matriz Pilar, Mercedes, Perdões e, finalmente, a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Está escrito no folheto turístico não precisar de visita guiada para essa última: altar simples, paredes, madeira, barro, ferro, sem ouro, construída por escravos proibidos de frequentar a missa com os brancos de Ouro Preto. Depois é só continuar subindo, achar um lugar barato pra comer perto do Hotel reformado pelo Niermeyer e pegar o filme do Grande Otelo e do Oscarito às 20hs. O subidão da Cooperifa também tinha paralelepípedos antigamente, sabia? Hoje é terça, não é? Perdemos o sarau. Será que a Dona Edite recita Navio Negreiro? A gente jogava bola do lado do Zé Batidão, na rua da Lazer, na da EMEI pouco mais pra baixo ou lá atrás na pracinha. Eu demorei muito para perceber que eles tiraram os paralelepípedos. Como uma coisa pode estar ali num dia e noutro, assim, desaparecer? Si a vida parasse, talvez fosse possível sofrer menos… Até o córrego perto do sacolão, no largo da Piraporinha, na frente da Casa de Cultura, eles tamparam. Um dia a bola caiu dentro dele, o Bunhu foi pegar, escorregou, meteu o pé no esgoto, ficou puto, foi embora. Poucos do time sabiam seu nome – foi estranho enterrar o Dirceu no São Luiz se o Bunhu é que morreu, coisa besta, não obedeceu quando eles mandaram. Parado, encosta na parede, levanta os braços, abre a perna, devagar, devagar, devagar, meu filho, a vó ensinou nunca correr, descalço, pé preto, fica atento, não anda sozinho, diz só “sim” ou “não” e não esquece do “Senhor” no final de cada frase. O moleque jogava muito. Podia estar nas Olimpíadas. A moça do judo é da Cidade de Deus, né? Ouro Preto tem paralelepípedo de 200 anos. O pessoal fala que absorve melhor a água da chuva e tal. Era asfalto, o sangue do Bunhu foi pela sarjeta até a boca de lobo.
*
Os olhos de Dirceu que são réus e culpados, que sofra e que beije os ferros pesados de injusto Senhor, raça do caralho, enquanto Marília é degredada de seu próprio corpo, que não lhe pertence mais, nas jornadas de 40 horas de trabalho, salário de miséria, ônibus lotado, preocupação pro filho não entrar no tráfico, a filha não engravidar. Uma merda!
*
A poesia conquistada retém o impulso de querer tatuar o nome dos mortos nas costas desses filhos das putas. Bunhu! Morreu o melhor de nois naquele dia. Amarrá-los também em praça pública, riscar seus lombos, jogar sal, ver a pele pálida encolher igual lesma, sabe? Murchar, os desgraçados! Observar as lágrimas se misturarem com o sangue e desencarnar os privilégios, um por um. Cortar a mão de quem aperta o gatilho, de quem faz a arma e vende e lucra com a bosta toda. Talvez a igualdade chegue só assim. Não? Não pode ser. Ainda que os inconfidentes não se incomodassem com a escravidão. Não. Ainda que, no museu da Casas dos Contos, o monitor apresenta a cozinha dos escravos de olhos azuis e crachá da Universidade Federal de Ouro Preto, enquanto a faxineira negra, que me chama de filho quando ensina o caminho do banheiro, tem no lado esquerdo do peito o nome da empresa terceirizada, talhado em letras douradas. Não. Ainda que esse desejo violento de destruição seja a mais sincera vibração dos meus versos. Não. Ainda que a carne enrijeça ao lembrar do estalar do chicote neste amontoado de coisas, nesta senzala moderna chamada periferia como disse o poeta. Não. Libertas que serae tamen.
*
P.S.: O nome da minha vó também era Laura, sabia? Ela faleceu exatamente no dia em que peguei um avião pela primeira vez. Passei anos procurando a ligação entre essas duas coisas. Ela era mineira como você. Nasceu perto de Ouro Preto. O apelido dela era “branquinha”. Não há sentido para nada disso. Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. Leia Drummond. Não resolve nada, Laura, apenas ajuda a reconhecer as flores amarelas, medrosas, que perfuram o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio. Força e obrigado. O seu medo, talvez, seja o melhor de você, com ele se salvará um dia e nos dá hoje uma esperança mínima.